segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Marias, Teresas, Gabrielas... Todas "maria da penha"

Há cinco anos.
Setembro de 2006. 
Plantão policial.
Primeiros dias de vigência da Lei 11.340, promulgada no dia 07 de agosto daquele ano.
Lei "Maria da Penha".
A partir do dia 22 de setembro de 2006, homem que batesse na mulher seria preso.
Seria?

Dez da noite. Chega a primeira ocorrência.
A mulher, com um hematoma no supercílio e marcas nos braços, por onde fora segura pelo companheiro e sacudida. Na frente dos filhos, de cinco e oito anos.

Chegou embriagado, agressivo.
Os militares, já na expectativa de ficar horas aguardando a lavratura do flagrante.
A mulher, assustada mas decidida: queria que ele ficasse preso.

Duas outras situações na frente do registro da agressão. Tráfico e roubo.
Flagrantes demorados.

A mulher, vamos chamá-la de Teresa, começou a ficar preocupada com os filhos em casa, com vizinhos. Não podia chamar ninguém da família, esse tipo de coisa se resolve em casa, não na polícia, não incomodando os vizinhos, dando motivos para falatório.

Finalmente, por volta das duas da manhã, começa o flagrante. 
O agressor já estava mais calmo, passara o efeito da cachaça de sexta-feira.
A vítima já estava envergonhada, afinal, tudo não passara de um grande mal entendido.

As crianças, sozinhas em casa...
Os militares foram ouvidos, e foram embora. Estavam ali já fazendo hora extra, o turno já terminara há mais de uma hora.

O marido disse que chegou em casa, do bar, e não tinha jantar pronto. Que trabalhava o dia todo, e tinha direito de tomar uma cachacinha pra relaxar antes de ir pra casa. Que ao chegar, em vez do jantar pronto, encontrou a mulher brava por causa da demora, com ciúmes. Disse que ela começara a jogar as panelas no chão, e gritar igual uma louca, e que ele só a segurou. Que ela se soltou e caiu, batendo a cabeça na pia, por isso se cortou. Que os vizinhos ouviram a briga e chamaram a PM, por causa do barulho. E que ela gritava que ele seria preso, porque deu no jornal que tinha uma nova lei aí...

A mulher disse que o marido chegou bebado, querendo comida, e começou a jogar as panelas no chão. Que de repente agarrou-a pelos braços, e a sacudia. Que ela conseguiu se soltar, e tentou correr para o quarto, e ele a puxou, fazendo com que caísse. Que quando viu o sangue, ficou mais calmo e pediu desculpas. Que os vizinhos já tinham chamado o 190 e quando a polícia chegou, disse que tinham que ir para a Delegacia.

A mulher pede para que o homem seja solto, que é bom pai, bom marido, só fica assim quando bebe, sabe, moça...

Diz que ele é trabalhador. Que não é bandido. Pergunta, chorando, se ele vai ficar preso com os bandidos...

A fiança é arbitrada. Mínimo legal. Ela chora. Não tem como pagar.

Antes de, envergonhada, dizer que não tem dinheiro para voltar para casa (quase quatro da manhã), e a delegada, iniciante, comovida e ela também envergonhada, pois não tem gente suficiente para mandar a viatura levar a vítima para casa, pede para uma equipe da PM que estava saindo para levar Teresa em casa.

Oito da manhã.
O marido, já completamente curado, está acanhado e tímido, no canto da cela, junto com os dois assaltantes. Os do tráfico eram menores, não ficam na cela com os adultos.

Quase entregando o turno, chega Teresa, com o dinheiro da fiança.
Chinelo de dedo, traz para o marido um par de sapatos (ele estava descalço quando a polícia chegou).

A delegada, novata, fica revoltada com Teresa. Como assim, pagar a fiança dele? Ele te bateu!!!

E Teresa, humilde, fala: "Mas eu não tenho para onde ir"

E a Autoridade Policial, que leu toda a lei Maria da Penha para fazer tudo direitinho, fica sem palavras e sem reação.

O escrivão coleta a fiança, os agentes liberam o marido, e saem, Teresa e seu algoz, cabisbaixos, de volta ao lar e aos filhos.

E a equipe se despede, entrega o turno para a próxima Delegacia de Plantão e vai descansar ou trabalhar mais. 

A delegada chega em casa, e solta todas as lágrimas que segurou durante toda a noite, toma um banho quente, se deita, e tenta dormir. 

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Semana passada.

Quase cinco anos da Lei "Maria da Penha".

Plantão policial. Mesma sala, mesma falta de estrutura. Quase as mesmas faces. Roubo, tráfico, porte de arma, "Maria da Penha".
As ocorrência de violência doméstica agora são chamadas de "maria da penha".
Chegam em uma média de três ou quatro por noite, dependendo da noite, mais, dependendo, menos. 
Domingo é o pior dia. 
Os policiais chamam de "efeito Fantástico", por causa do fim do fim de semana.
As vezes tem ainda o agravante do futebol, o time perde, a mulher apanha.

A delegada não é mais a mesma.
Não tão novinha, não tão inocente.
Criou uma casca.

Mas nesse plantão, Gabriela chegou, com o supercílio cortado, marcas de dedos nos braços. 
A mesma cara de assustada.

As "marias da penha" não tem cor, credo, classe social.

Gabriela chegou, e não havia ocorrências na frente. 
Pediu para falar com o delegado.
Disse que não queria que o companheiro fosse preso.
Que foram os vizinhos que chamaram a polícia.
Que ela ia deixá-lo, mas não queria que ele fosse preso.

A delegada, já calejada, perguntou então se ela tinha para onde ir.
Família, amigos.
Ela disse que não. Mas que trabalhava, e que daria um jeito.

A delegada pensou que a lei, depois de cinco anos, ainda gera dúvidas por aí, sobre a necessidade ou não de representação para a lavratura do flagrante.

Gabriela não queria assinar. 

A delegada propõe um abrigo.
Faz dezenas de ligações e consegue uma vaga, para Gabriela e os três filhos.
Por fim, pede, por favor, aos PMs que fizeram o registro, que levem Gabriela em casa para buscar os filhos e roupas, e os leve ao abrigo. O cabo liga para o sargento, que liga para o tenente, que autoriza.

O marido, ainda bebado, fica sentado, só olhando a movimentação.

O cabo me pergunta se não vai ter flagrante. Eu digo que não, que a vítima não quer.
Ele diz que é sempre assim, que nunca dá em nada, que essas mulheres não tem vergonha...
A delegada engasga, quer falar que não é tão simples assim, mas... fim de plantão, cansada, física e emocionalmente.

Eles saem, e ao fim de uma hora, ligam para a delegacia, dizendo que Gabriela já estava no abrigo, com os filhos.

A delegada vai falar com o marido.
Ele diz que não bateu, não ameaçou, que foi só uma discussão. Que Gabriela tem ciúmes e só quer o seu dinheiro. Que a casa é dele, e que ela não tem direito.


A delegada se arma com os últimos fiapos de paciência, e diz que ela já deixou a casa, mas que o juiz decidira sobre os bens. Que se ele fizer algo com os pertences de Gabriela, será crime. E diz que por ela, ele ficaria preso, mas... Ele se cala. Pergunta se pode ir. É liberado.


A delegada chega em casa, toma um banho. Senta para ver tevê, e pensa na merda que é essa sociedade machista, onde a lei que foi feita para proteger as vítimas da violência doméstica já foi julgada inconstitucional por um juiz que não foi punido, só ficou afastado, recebendo vencimentos.


Está passando Lei e Ordem: Unidade de Vítimas Especiais.


E a delegada dorme com a tv ligada, sonhando que um dia o sistema vai funcionar.


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As situações são verídicas.
Só foram alterados os nomes.


A lei 11.340/06 completou cinco anos de vigência.


Algumas coisas mudaram. 
Hoje já existem abrigos, um centro de referência.


Mas ainda existem dúvidas sobre a necessidade de representação da vítima.
Sobre a aplicação de penas substitutivas.


E ainda demora, as vezes meses, para que o Judiciário conceda medida protetiva de urgência.


Ainda são mortas dez mulheres por dia, por seus companheiros e ex-companheiros.


Ainda existem pessoas que acham que "em briga de marido e mulher não se mete a colher".
Que tem mulher que "gosta" de apanhar.
Que a lei é injusta, pois os homens também são vítimas de violência doméstica, e não existe lei "João da Penha".

Então, pela efetividade da lei "Maria da Penha" e pelo fim da violência contra a mulher, a luta tem que ser diária, em todas as frentes. 

Este post foi escrito para a Blogagem Coletiva "Lei Maria da Penha", promovida pelas Blogueiras Feministas.




2 comentários:

  1. e pensar que essas soh duas historias perdida entre milhares. e milhares bem piores. ai, da um aperto no coracao. realidade doi, mer posts como esse fazem a gente ter ideia do que acontece, mas depois a gente esquece. e elas continuam apanhando por aih.

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  2. Seu post é esclarecedor e didático. Já postei no meu facebook. :D

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