terça-feira, 4 de maio de 2010

Culpar as vítimas, uma estratégia infame

Recebi este e-mail na época em que ocorreram os fatos, e escrevi o texto abaixo, que compartilhei com alguns amigos, em grupos de discussão. Infelizmente, o assunto ainda é atual.

Em janeiro deste ano, uma cabeleireira foi morta em seu local de trabalho, pelo ex-marido, contra quem vigorava uma medida protetiva, de restrição de aproximação; Ele não só descumpriu a medida, como entrou, armado, no salão, e atirou duas vezes contra a ex-mulher. E houve quem também culpasse a vítima...

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Subject: Fw: Eloá Parecia ter 15 anos?

Eloá Parecia ter 15 anos?

Sei que nada justifica um crime como aquele, todavia, a exposição do corpo,
como vem acontecendo com essas jovens, de certa forma, influencia uma
juventude despreparada e alienada! Será que a mamãe e o papai de Eloá, sabia
da existência das fotos? Procurava se aproximar ao máximo de seus filhos?
Dava as devidas orientações?

Vamos rever nossos conceitos, esta inversão de valores, está nos levando ao
fundo do poço.”


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Abri meu e-mail ao chegar da aula, e recebi a mensagem acima, com um anexo incluindo uma montagem, no Powerpoint, de fotos de adolescentes em poses “sensuais”, sendo que uma delas supostamente é a adolescente Eloá, vítima do crime de homicídio, perpetrado pelo ex-namorado, na cidade de Santo André-SP.

Não devia ter aberto.

É uma mensagem que me lembra aquela, dos três rapazes entregues pelo Exército aos traficantes da facção rival, e que foram mortos, obviamente.

Trata-se claramente de uma tentativa de culpar a vítima.

Os três rapazes, porque tinham passagens pela polícia, e eram investigados pela prática de crimes graves, foram ironicamente chamados anjinhos, e a barbárie cometida foi justificada.

No caso da adolescente, a mensagem não tem o mesmo tom agressivo, até tenta um suposto resgate de valores. No entanto, ali mesmo está a justificativa da barbárie: era uma menina sem valores, sem família decente, e provocava o rapaz com fotos “sexies”.

Realmente, nas fotos aparecem imagens de jovens com biquínis, roupas íntimas ou bem curtas e decotadas, fazendo poses de revista masculina. Percebe-se que se trata de adolescentes, e que os locais onde foram feitas as poses eram locais simples, sem as superproduções das revistas ditas ‘masculinas’.

Há pouco tempo, nos EUA, uma cantora e atriz adolescente, filha de cantores de sucesso, e ela mesma estrela de um seriado de sucesso, causou choque na puritana sociedade norte-americana ao posar, não para uma revista masculina, mas para a Vanity Fair, uma publicação centenária de variedades. Não sei definir um paralelo no Brasil, seria uma mistura de revista de cinema, moda, entrevistas, política... A fotógrafa foi a famosa Annie Leibowitz, e a modelo a cantora Miley Cyrus.


O bafafá? A modelo posou de maquiagem borrada, enrolada em um lençol, sugerindo nudez e a prática de atividades pouco condizentes com sua idade.

Choque? Diante de uma sociedade que coloca as mulheres como objetos de desejo, que cria produtos de mídia como o seriado Gossip Girl (para quem não conhece, um seriado que é o chamado “Sex and the city” para adolescentes, baseado na obra de uma suposta socialite nova-iorquina, que retrata o cotidiano de jovens endinheirados e ociosos do Upper East Side de Manhattan)? Que glamouriza a juventude sem atitude, consumista, ociosa, alienada e irresponsável?

No Brasil não ficamos atrás: quem não conhece (ou ouviu falar) da novelinha Malhação? Transmitida no horário da tarde, glamouriza os belos corpos das jovens, e retrata situações supostamente cotidianas dos jovens brasileiros. Confesso que há anos não assisto ( e confesso também que assistia Gossip Girl...), então não sei como está atualmente, já que na minha época, Malhação realmente se passava em uma academia... quantos brasileiros passam o dia na academia? Nem de ginástica nem na outra...

Bem, e os sonhos das brasileiras, atualmente? Não é ser Miss... é ser “the next top model”, e aparecer seminua, fazendo poses nada normais, na TV a cabo, sendo esculachada pelos ‘profissionais da moda’! É ser a próxima BBB, a próxima ex-miss, ex-BBB, modelo e atriz. Ou ser “mulher-fruta”.

Culpar a vítima por repetir esses padrões é muito simples. Culpar os pais por não vigiarem a mocinha indefesa, não menos simples. Culpar essa inversão de valores, simplérrimo!

Pois morro de medo se respostas simples. Em situações físicas, vá lá, como aquela do geólogo que ajudou a tirar o cisterneiro do fundo do poço, com uma solução simples. Nesse caso a navalha de Occam funciona, sim.

Mas quando se fala de relações sociais, não acredito não.

A intenção de quem, sabe-se lá porque, perdeu tempo procurando fotos da vítima, fazendo uma montagem do PowerPoint e remetendo para toda a lista de contatos pode ser “boa”, mas derrapou feio...

A verdade é que a tragédia aconteceu porque o autor se sentia “dono” da namorada. Se foi ele quem terminou, como disseram na imprensa, e depois quis voltar, que tinha ela que recusar? Afinal, ele era um amor, tão educado!

Pois me parece que ele sentia pela namorada o mesmo que sinto por um objeto inanimado qualquer.

É, porque pela minha gata de estimação eu tenho o cuidado de não achar que é toda hora que quer colo, ou carinho, ou que ela está 24 horas por dia à minha disposição, sem considerar quaisquer outras possibilidades.

Apenas com uma chave, ou um papel usado, ou uma caneta qualquer eu teria o mesmo descuido, de achar que posso descartar e depois recuperar, e o objeto, como coisa que é, não reage, não responde, não tem vontade ou desejos próprios.

Mas o autor foi criado nessa sociedade.

E o autor era um bom rapaz....

Foi criado vendo as meninas de 12 anos se vestirem como mulheres de 25.

Foi criado vendo novelas onde ainda se reproduz o estereotipo da mulher-objeto.

Foi criado vendo TV, com comerciais de desodorantes masculinos que mostram mulheres seminuas como salmões-fêmeas na piracema, enfrentado todos os obstáculos para alcançar o macho. Só que as fêmeas do salmão já foram fertilizadas, neném, e estão correndo pela sobrevivência da espécie. E na natureza, são os machos quem competem pela atenção da fêmea. Mas não pega bem, né? Não vai vender desodorante...

Não, o autor não era um bom rapaz.

Porque se fosse, não teria feito o que fez.

A mídia não é culpada de tudo. A mídia reproduz nossa cultura.

E nos achamos melhores que os somalis que apedrejaram até a morte uma adolescente de 13 anos que foi estuprada e então acusada de desonrar a família.

Culpam a vítima... na Somália dominada pelos senhores da guerra que armam meninos de 8 anos com metralhadoras.

E aqui, na terra do futebol e da mulata...

Adolescentes de classe média agridem uma trabalhadora, e se justificam porque “pensaram que era uma prostituta”.

Esse é o mesmo pensamento que enseja a divulgação dessas fotos, sejam ou não da vítima.

O que faz algum homem pensar que qualquer mulher, seja ela professora, doméstica, prostituta ou médica, pode ser agredida? Que qualquer ato de qualquer mulher é uma provocação aos incontroláveis instintos sexuais masculinos?

Não culpem a vítima por ter 15 anos e estar deslumbrada com um namorado mais velho.

Essa é a lógica do sistema. Não seja hipócrita. Talvez, se fosse sua filha, e você que está lendo isso for homem, você não gostasse – afinal, você é homem, e sabe o que passa na cabeça dos homens... e você, mulher, sabe o que se passa na cabeça das mulheres!

Eloá parecia ter 15 anos? Sim, parecia e tinha. Reproduzia, consciente e inconscientemente, os padrões esperados pela sociedade onde vive.

Ela estudava. Talvez, se tivesse sobrevivido, chegasse até a faculdade, quem sabe, e parasse de achar que seu corpo era tudo que tinha. Ou não.

Pois o padrão é tão totalizante que não admite questionamentos, e atinge mulheres de todas as faixas, etárias, sociais, raciais, econômicas, culturais...

E o autor... Ele tem 22 anos, ele tem 55 anos, ele tem 30 anos. Ele é branco, negro, asiático, brasileiro, somali, americano, argentino e japonês. Ele é analfabeto, semi-analfabeto, graduado, mestre e doutor. Ele é pobre, rico, miserável e remediado. Ele é feio, bonito, magro, gordo, bem vestido, mal-ajambrado. Ele é todos e qualquer um.

Nenhum de nós é inocente.

Nenhuma de nós.

Continuamos a criar nossos filhos, filhos da geração Xou da Xuxa, de forma desigual, reproduzindo a desigualdade e a inferioridade que geram agressões como a de Santo André, como a de Contagem, a de Belo Horizonte, a do Rio de Janeiro, a de Nova Iorque, Londres, Paris, Lisboa, ou alguma cidade obscura na Somália, na Tunísia ou no Afeganistão: nessa seara, o talibã é aqui.

Nenhum de nós é inocente. Nem a vítima. Mas não a culpem, porque sim, ela só tinha 15 anos.

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