domingo, 25 de abril de 2010

A noite dissolve os homens

A noite dissolve os homens
(Carlos Drummond de Andrade
Livro: "O Sentimento do Mundo")

"A noite desceu. Que noite! Já não enxergo meus irmãos.
E nem tão pouco os rumores que outrora me perturbavam.
A noite desceu. Nas casas, nas ruas onde se combate,
nos campos desfalecidos, a noite espalhou o medo e a total incompreensão.
A noite caiu. Tremenda, sem esperança...
Os suspiros acusam a presença negra que paralisa os guerreiros.

E o amor não abre caminho na noite.
A noite é mortal, completa, sem reticências,
a noite dissolve os homens, diz que é inútil sofrer,
a noite dissolve as pátrias, apagou os almirantes cintilantes!
nas suas fardas.

A noite anoiteceu tudo... O mundo não tem remédio...
Os suicidas tinham razão.

Aurora, entretanto eu te diviso, ainda tímida, inexperiente das luzes que vais ascender
e dos bens que repartirás com todos os homens.

Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações,
adivinho-te que sobes, vapor róseo, expulsando a treva noturna.

O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos,
teus dedos frios, que ainda se não modelaram mas que avançam
na escuridão como um sinal verde e peremptório.

Minha fadiga encontrará em ti o seu termo,
minha carne estremece na certeza de tua vinda.

O suor é um óleo suave, as mãos dos sobreviventes se enlaçam,
os corpos hirtos adquirem uma fluidez, uma inocência, um perdão
simples e macio...

Havemos de amanhecer.
O mundo se tinge com as tintas da antemanhã
e o sangue que escorre é doce, de tão necessário
para colorir tuas pálidas faces, aurora"

Entre tantos falsos Drummonds, que são interessantes, mas não tem a profundidade do poeta itabirense, lembrei-me deste, que li há alguns anos.
Este poema foi escrito em 1940, no auge da ocupação nazista, e quando Getúlio ainda apoiava o Eixo e os governos facistas de Hitler, Mussolini e Franco.
Nos dias em que vivemos, além de sangue, escorre limo, lama, pus. A noite de nossa época não é a guerra declarada, não é o autoritarismo escancarado. A noite é a desonestidade, a corrupção, a falta de escrúpulos, a impunidade, a violência cotidiana, rotineira, comum e sem limites.
A aurora?
Eu creio que ela há de chegar, pelos atos anônimos e despreendidos daqueles que não compactuam com a amoralidade e com a desonestidade.
Para cada ato de covardia, temos vários de bravura.
Para cada ato de corrupção, temos vários de probidade.
A aurora há de chegar e diluir essa noite tenebrosa.
O choro e o ranger de dentes, a raiva e a humilhação, são o pus que escorre dessa ferida fétida, e como o sangue que escorre, é necessário para colorir as pálidas faces do amanhecer.


Escrevi este texto há alguns anos, e compartilhei com alguns amigos, por e-mail e pelo orkut.

Foi uma resposta a certos textos que nos eram encaminhados, como de autoria de Drummond, de Shakespeare, de Luis Fernando Veríssimo, de Arnaldo Jabour (pra vermos como colocam todos no mesmo saco). Na verdade, não sou uma grande leitora de poesia, prefiro prosa. Mas alguns poemas são maravilhosos. Este, a noite dissolve os homens, descobri na oitava série, havia um excertozinho no livro didático de literatura, e eu procurei até achar o poema inteiro.

Então ele sempre está na minha memória, entre os meus favoritos.

P.S.:

Stalingrado foi uma das mais terríveis batalhas da 2ª Grande Guerra Mundial, tendo o cerco nazista custado as vidas de mais de 1.000.000 (um milhão de pessoas), entre soldados soviéticos e civis, habitantes da cidade.

P.P.S: Este é ano eleitoral.

Já começaram as campanhas difamatórias, os e-mails encaminhados, sem origem e sem assinatura, propagando inverdades ou meias-verdades.

Vai escorrer ainda muito pus, fétido, podre, dessa noite política que vivemos.

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Mas não perco (não perdi ainda...) a esperança na democracia, e no amadurecimento deste recém-nascido, que é o Estado Democrático de Direito brasileiro.




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